Em meio à corrida para a transição energética, o Brasil tenta aumentar o uso de fontes renováveis no setor de transportes, que foi responsável por 33% do consumo de energia do país em 2023, desbancando a indústria. Investimentos público-privados e maior atenção às políticas de mobilidade urbana, em especial ao transporte coletivo, são a chave para a redução do impacto nas mudanças climáticas, dizem especialistas ouvidos pelo R7.
Em 2023, o número de veículos movidos a energia limpa — como etanol, biocombustíveis, motores elétricos — chegou a um para cada quatro automóveis no país, segundo a EPE (Empresa de Pesquisa Energética), ligada ao Ministério de Minas e Energia. Apesar disso, as emissões de gás carbônico aumentaram 34% em 13 anos, de acordo com a Agência Internacional de Energia da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que considera o período entre 2009 e 2021.
Para o especialista em mobilidade urbana e cidade contemporânea do Iema (Instituto de Energia e Meio Ambiente) Felipe Barcellos, apesar dos resultados, o país não está atrasado para a transição, mas, sim, lento. Em 2023, por exemplo, a participação de renováveis na OIE (Oferta Interna de Energia) ficou em 49,1%, crescimento de 5,6 pontos percentuais nos últimos 20 anos, indicou a EPE.
Barcellos ressalta que, além do investimento em tecnologias, o Brasil deve levar o foco para mobilidade, buscando soluções para incentivar o transporte coletivo e, consequentemente, reduzir emissões de combustíveis fósseis.
“A gente acaba falando muito de veículo elétrico, de biocombustível e, agora, até hidrogênio, que são ações mais focadas em tecnologia. Mas a gente também tem que falar de duas ações que devem vir antes: evitar viagens e mudar viagens, incentivando o transporte coletivo”, diz.
Em contrapartida ao cenário positivo dos biocombustíveis e outras energias renováveis, o Brasil poderá ampliar em, ao menos, 30% a demanda nacional de petróleo e derivados até 2050, de acordo com dados da EPE.
A doutora em transportes Adriana Modesto destaca que o novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) abre possibilidades para obras voltadas ao campo. Entretanto, o governo deve alinhar os projetos com meios sustentáveis, não só priorizando demandas de veículos individuais.
“Ao investir em transporte público coletivo de qualidade, de certa forma, pode-se desestimular o uso do transporte individual motorizado, favorecendo a migração para o modo coletivo, impactando favoravelmente o meio ambiente, a redução de congestionamentos e sinistros de trânsito”, afirma.
Rotas sustentáveis
Uma das possibilidades de descarbonização, a troca dos combustíveis fósseis por soluções elétricas ocorre em pelo menos 16 cidades e regiões metropolitanas do país. Entretanto, os 557 ônibus elétricos em circulação nestes locais representam apenas 0,077% da frota nacional que é de 716,9 mil veículos. Os dados são do E-Bus Radar, plataforma desenvolvida pelo Iema e pela Senatran (Secretaria Nacional de Trânsito).
Atualmente a região Sudeste concentra a maioria dos veículos eletrificados. A distribuição desigual pode ser atribuída a fatores socioeconômicos, participação no PIB (Produto Interno Bruto) e até mesmo tamanho da população. Para o professor de pós-graduação da FGV (Fundação Getúlio Vargas) Jaques Paes, a falta de infraestrutura em determinadas regiões pode atrapalhar o desenvolvimento dessa tecnologia.
“Se no Sudeste temos problemas com a infraestrutura, quando olhamos o que temos no Norte e no Nordeste, a gente potencializa essa falta de infraestrutura. Então, não vejo no futuro muito próximo uma forma de conseguirmos olhar carros elétricos no mesmo volume que temos no Sudeste. Por conta dessa infraestrutura, da falta de uma política pública integrada, por falta de vontade política”, diz Paes.
Ainda em ascensão no país, o hidrogênio verde também é visto por especialistas como um dos maiores potenciais para a descarbonização do transporte rodoviário. Na posição global, o Brasil está na 21ª colocação entre os países que mais contam com projetos de produção de hidrogênio, segundo a Confederação Nacional do Transporte, totalizando 12 programas.
Além de tecnologias mais modernas, o país lidera a produção de cana-de-açúcar, uma das alternativas para produção de biocombustível. Para Paes, é necessário um maior investimento em fontes de energia derivadas de biomassa, como o biodiesel e etanol, por exemplo.
“Se nós, de fato, quiséssemos investir em uma transição energética, aproveitando a infraestrutura que temos, poderíamos investir no biocombustível, no álcool e em outros biocombustíveis que são gerados através da biomassa. O que é mais fácil do que pensar em uma transição energética baseada em parques eólicos e em parques solares. Acho que temos um grande potencial de investimento em biocombustíveis no Brasil. Porém, ele é pouco explorado”, completa.
O dilema das fontes renováveis
As fontes renováveis ainda causam menos danos quando comparadas a veículos movidos por derivados de petróleo. No caso dos elétricos, por exemplo, eles emitem cerca de 65% menos gases de efeito estufa em comparação aos veículos movidos a combustão interna, em uma mistura de gasolina e etanol.
Apesar disso, o mundo ainda trava uma corrida para desenvolver uma energia totalmente limpa. Ao considerarmos o processo de produção e o ciclo de vida completo dessas energias, existem impactos indiretos causados ao meio ambiente.
“100% limpa, infelizmente não existe. Qualquer tipo de tecnologia vai ter o impacto que precisa para ser cuidado, ainda mais tecnologias que vão ser aplicadas em grande escala. Quando a gente fala em biocombustíveis, por exemplo, ele é feito de soja e a gente sabe que ela é plantada ali na região, principalmente, do Mato Grosso. Então ela está próxima da floresta amazônica. Se essa soja for plantada, ainda mais para dentro da floresta amazônica, ela traria um impacto ambiental muito grande”, diz Felipe Barcellos.
Devido à necessidade do lítio para a produção das baterias usadas em carros elétricos, por exemplo, é estimado que até 2050 a demanda global acumulada pelo material cresça até 1.060%, segundo dados do Banco Mundial. Para especialistas, caso não seja explorado corretamente, a extração pode causar impactos ambientais em diferentes ecossistemas.
Segundo a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos, o processo de produção de um carro elétrico pode gerar mais emissão de gás carbônico quando comparado ao de um veículo comum. Isso ocorre devido à energia adicional necessária para fabricar a bateria do elétrico.
A indústria de transportes tenta encontrar uma solução para descarbonizar a produção de baterias para veículos elétricos.
“A produção de um carro elétrico ou um ônibus elétrico gera três a quatro vezes mais CO₂ intensivo do que um carro normal, mas obviamente que a gente tem benefícios a longo prazo. Mas a gente não pode esquecer que a produção desses carros e ônibus, pelo tipo de metal que usam, pelo tipo de minério e extração que é feita, eles poluem mais na sua fabricação. Então esse desafio também tem que ser analisado”, explica o professor Jaques Paes.
Especialistas ouvidos pelo R7 foram unânimes em dizer que, quando se trata de sustentabilidade, é preciso falar também de mobilidade urbana e deslocamento de grandes massas nas cidades. Atualmente, o país conta com 17 municípios com mais de 1 milhão de habitantes e o número salta para 28 quando consideradas as regiões metropolitanas.
A locomoção nos municípios preocupa não só os pesquisadores da área, mas a população de forma geral. É o que mostra a pesquisa Desenvolve Brasil, feita pela ouvidoria do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. O tema intramunicipal ocupou a nona colocação entre 35 tópicos listados. No rol de preocupações dos brasileiros, a locomoção nas cidades só perde para temas como saúde, combate à violência, trabalho e emprego.
Apesar do descontentamento, o país tem uma das legislações mais avançadas do mundo no tema, segundo pesquisadores. Em 2012, foi aprovada a criação da Política Nacional de Mobilidade Urbana por meio da lei 12.587. Entre outras coisas, ela preza pelo desenvolvimento sustentável, acessibilidade universal, equidade no acesso ao transporte público, eficiência e eficácia na prestação de serviços de transporte e na circulação urbana.
Os dados da Pemob (Pesquisa Nacional de Mobilidade Urbana) de 2023 mostraram que, entre as 15 regiões metropolitanas monitoradas, sete contam apenas com ônibus metropolitanos para o transporte coletivo. São Paulo aparece com a maior diversidade de modais ofertados, além dos ônibus, oferece monotrilho, trem e metrô para os moradores das cidades do entorno. Rio de Janeiro aparece logo em seguida com a oferta de ônibus, trem, metrô e barco; e depois Salvador, com ônibus, metrô e barco. Entretanto, além da criação de indicadores, há poucos resultados apresentados pelo poder público nos 12 anos que se seguiram à promulgação da lei.
Dificuldades no dia a dia
No núcleo rural Vargem Bonita, a aproximadamente 23 km de Brasília, a educadora social Amanda Martins fala das dificuldades do transporte público na região. Por ser um local mais afastado, a comunidade sofre com a defasagem de veículos e falta de infraestrutura.
“Você tem que ir a uma consulta no médico e você tem que sair 3 horas antes. Porque o horário do ônibus é só aquele que passa ali e o próximo é só daqui a 5 horas, por exemplo”, diz Amanda.
Solução nos trilhos
A falta de diversidade de soluções para o transporte público e a dependência de transportes rodoviários – isto é, ônibus, carros, moto e outros – é um dos empecilhos para o avanço da transição energética no setor no Brasil.
“O ponto principal que é ruim para o Brasil é porque é um país de dimensões continentais, que deveria ter seu modo de transporte, principalmente terrestre, em cima de ferrovias e nas regiões onde tem [condições], hidrovias, principalmente na região amazônica. O Brasil insiste, os governos insistem, em fazer uma política rodoviarista. Então, nós temos uma situação esdrúxula, em que a gente fala de ter boa conservação de meio ambiente e a gente gasta dinheiro em uma das maiores causas de poluição ambientais, que é o transporte rodoviário, que é uma das maiores emissões de gases de efeito estufa e da geração das ilhas de calor nas cidades”, explica Carlos Penna Brescianini, ex-coordenador do Metrô DF e Pesquisador em Mobilidade Urbana.
Segundo dados da ANPTrilhos (Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos), a implementação de um modal ferroviário no país permitiria economizar o uso de até 1 bilhão de litros de combustíveis fósseis e reduzir em até 2,1 milhões as emissões de gases poluentes na atmosfera por ano. Além disso, garantiria uma economia de R$ 11,4 bilhões com custos de manutenção das vias no país.
O documento também pontua que a ampliação do uso de transportes sobre trilhos traz benefícios para os usurários, como a redução do período entre os deslocamentos, assim como prevê a Política Nacional de Mobilidade Urbana. Para os grandes centros, os transportes ferroviários aparecem como vantagem inclusive em relação aos ônibus e BRT (Ônibus de Trânsito Rápido).
Em 2023, as linhas de trens e metrôs do país atenderam a 2,48 bilhões de viagens. O uso dessa modalidade no país está muito abaixo do índice de transporte de passageiros em países como China, Espanha, Alemanha, França e Japão – que detêm as cinco maiores redes de trens de alta velocidade do mundo.
Para Brescianini, é uma questão de mudar a abordagem da gestão pública e da política de investimentos em infraestrutura. “A transição energética implica em se modificar o sistema de transporte do Brasil. Nós temos de parar de gastar dinheiro em viadutos, em asfalto, em túneis rodoviários, passar a gastar dinheiro em metrô, trem, VLT. Você diminui a quantidade de automóveis, porque você está investido em trem. Você não vai ter necessidade de mais arcos rodoviários, mais pistas, mais viadutos. À medida que você oferece um transporte público, as pessoas utilizam menos o automóvel”, ressalta.
O especialista explica que o transporte multimodal seria ideal para uma adaptação às diferentes realidades das capitais brasileiras. “Nós não somos contra ônibus. Os ônibus são importantes, mas a função deles é curta distância. Por exemplo, você mora num local que fica a 2 km de uma estação, você vai pegar um ônibus de integração barato, ou que o preço já vai estar no preço da sua passagem e você vai pegar esse ônibus que vai te deixar na estação, aí você vai pegar seu metrô, seu VLT, seu trem até seu destino. Aí você vai ter uma quantidade enorme de passageiros pegando esses ônibus, em grande quantidade, vão circular curtas distâncias, poluindo pouco, transportando muita gente”, finaliza.
As ameaças ao transporte coletivo de qualidade
Especialistas apontam que o crescimento do transporte individual, políticas de incentivo à compra de carros e o surgimento de plataformas de transporte por aplicativo são alguns dos fatores que ameaçam os modelos de gestão da mobilidade coletiva atual.
De acordo com o diretor-executivo da CNT (Confederação Nacional do Transporte), Bruno Batista, o sistema atual de transporte público concorre diretamente com veículos clandestinos, motos e carros de passeio, o que pode prejudicar a oferta do serviço de qualidade.
Batista explica que passageiros que usam linhas que circulam por trechos mais curtos acabam financiando viagens com distâncias maiores, justamente por, na maior parte das vezes, usarem o transporte público com maior frequência. Nesse contexto, o diretor aponta que, para trajetos mais rápidos, passageiros acabam optando pelo transporte por aplicativo, que costuma ser barato.
“As pessoas estão migrando para isso [transporte por aplicativo], então elas acabam tirando um recurso essencial para o financiamento do sistema como todo. E, fora isso, existem veículos clandestinos e as motos, que cresceram muito. Então, hoje o sistema concorre de uma forma desequilibrada, às vezes uma forma não regulamentada”, diz o diretor.
O futuro da transição
Segundo a EPE (Empresa de Pesquisa Energética), é estimado que, até 2050, caminhões e ônibus movidos por eletricidade e gás natural representem 14% da frota circulante nacional. Grande parte da perspectiva é de veículos elétricos a bateria, que representam 13%. “ A frota em 2050 é composta por 479 mil veículos pesados elétricos e 52 mil a gás natural”, informa.
Apesar do contexto positivo, o relatório divulgado pela EPE aponta, ainda, uma tendência no aumento de 24% na emissão de gases da frota em circulação de caminhões e ônibus no Brasil. Em 2022, foram emitidas 132 milhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente e até 2050, essa quantidade pode subir até 164 milhões de toneladas, o que representa um crescimento de 0,8% ao ano.
O processo para transição energética, principalmente no setor de transportes, não será rápido, apontam especialistas. Jaques Paes defende que, para a mudança, serão necessárias políticas públicas de Estado, planejamento urbano integrado e investimentos público-privados, principalmente na área de infraestrutura.
“Quando a gente está falando de transição energética, a gente está falando basicamente em mudar toda uma estrutura, em fazer e construir toda uma infraestrutura capaz de suportar isso”, diz Paes.
Fonte: R7