“É que passarinho que voa não quer saber de gaiola”, diz a música da cantora Lauana Prado que ecoa na cabine do Mercedes-Benz Actros 2548 graneleiro de quatro eixos pilotado por Vanessa Mariano, de 42 anos, em mais um dia de trabalho como caminhoneira. A rotina dela, que em alguns dias chega a dirigir 11 horas, e de outras tantas mulheres que deixaram suas casas para fazer morada nas estradas do Brasil será retratada na versão feminina do seriado “Carga Pesada”, produzido pela TV Globo.
No lugar dos personagens Pedro e Bino, que no programa exibido entre 1979 e 1981 eram interpretados pelos atores Antonio Fagundes e Stênio Garcia, a trama gira em torno de Chica Coqueiro e Rosa Besourinho, protagonizadas pelas atrizes Thalita Carauta e Fabiula Nascimento. Ainda na fase de elaboração do roteiro e sem data para estreia, o programa foi aprovado após a gravação de um piloto.
“De uma ideia original sobre uma caminhoneira, se originou o reboot de uma série que tem um lugar afetivo no imaginário do Brasil”, escreveu Thalita, que idealizou o projeto ao lado de Aline Guimarães.
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De pai para filha
O ambiente majoritariamente masculino não assusta Vanessa Mariano, que é filha de um caminhoneiro e aprendeu com ele o amor pela profissão. Ela, que há 12 anos atua no transporte de produção agrícola, viaja pelo país em busca dos pontos com as melhores safras de alimentos como milho e cebola. Dos 26 estados do país, só não esteve em três: Roraima, Amazonas e Acre.
Na rotina, intercala as longas horas dirigindo com paradas para refeições que, na maioria das vezes, ela mesma prepara na cozinha instalada no caminhão. Os descansos, por segurança, são sempre em postos de parada, onde toma banho e dorme dentro do veículo. Nesses momentos, também aproveita e fala com a mãe e com o filho de 17 anos, que moram em Ponta Grossa, no Paraná, sua cidade natal. Mas se engana quem acha que a vida de Vanessa é solitária. Além dos amigos que fez pelo país, ela viaja acompanhada de Lupita, uma cachorrinha de estimação da raça lulu-da-pomerânia.
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— Só vive na estrada quem ama. O caminhão é egoísta, nos rouba para ele. Nos tira o convívio da família, nos impede de estar em datas especiais, já passei até mesmo um réveillon no caminhão, mas tenho certeza que é o meu lugar. Foi aqui que realizei o maior sonho da minha vida, viajar junto com meu pai, vendo o caminhão dele pelo meu retrovisor — conta.
Segundo dados do Ministério dos Transportes, o Brasil tem hoje aproximadamente 32 mil mulheres que atuam como caminhoneiras de forma remunerada, um aumento de 58% nos últimos dez anos, quando eram cerca de 20 mil. O quantitativo, no entanto, ainda configura menos de 2% do total de pessoas exercendo a atividade de forma profissional, que é de 2,1 milhões.
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A caminhoneira Suelen Lopes da Costa, de 31, relata que o avanço feminino ainda não foi suficiente para acabar com os preconceitos contra as motoristas. Segundo ela, são comuns as perguntas como “cadê o seu marido?” e “quem está dirigindo o caminhão?”.
De todos os desafios, no entanto, ela aponta a segurança como a maior preocupação das mulheres nas estradas. Após sete anos de viagens, Suelen concilia o trabalho no transporte com o projeto “Caminhos para elas”, que capacita outras caminhoneiras em temas como relacionamento com os clientes e ações de autoproteção.
— Sempre indico às caminhoneiras pararem em pátios seguros, que de preferência tenham guarda noturno, pontos iluminados e estacionamento perto da bomba de abastecimento. Falo para nunca dormirem na beira da estrada, na porta das empresas clientes — explica ela, que também atua como influenciadora nas redes sociais.
Foi só aos 49 anos que Noemy Santos conseguiu realizar o sonho de dirigir um veículo de grande porte. Ela, que quando jovem foi rejeitada em um curso de mecânica por ser mulher, acabou fazendo carreira como promotora de vendas, mas nunca se sentiu realizada.
— Eu via um caminhão na rua, desde novinha, e sentia algo diferente. Pensava que um dia eu ainda dirigiria um daqueles — lembra a caminhoneira, que já está há 15 anos na profissão.
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Noemy chega a ficar quase o mês inteiro longe de casa, em São Paulo. Quando tira seus quatro dias de folga, já fica ansiosa para a próxima rota. Ao todo, no período, roda aproximadamente oito mil quilômetros, mas já chegou a ficar 60 dias viajando direto. Mesmo com desafios, ela garante que a vida na estrada é divertida, com momentos de descontração e diversão. E avisa: quando se aposentar, vai comprar um motorhome.
— Vejo minhas novelas, faço crochê. Também levo sempre uma roupa arrumada porque pode aparecer algum passeio com as amizades que fazemos nas paradas. Faço questão de me cuidar, fazer minha unha e passar meu batom todos os dias antes de começar a viagem — enfatiza Noemy.
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Em defesa de equidade
Detentora do título de Rainha dos Caminhoneiros, a cantora Sula Miranda comemora o aumento de mulheres nas estradas, que, segundo ela, são mais produtivas e têm um relacionamento melhor com os clientes.
— A mulher caminhoneira é mais detalhista nos cuidados com o veículo, na organização de agenda, na alimentação e nas atividades que antes fazia em casa e hoje levou para dentro da boleia — avalia a artista, que já gravou duas músicas em homenagem às caminhoneiras, “De salto no asfalto” e “Poderosa na direção”.
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A gestora do Sindicato das Empresas de Transportes de Cargas de Ribeirão Preto e Região, Lucelia Pelegrini Veneroz, defende que o aumento de mulheres nas estradas tem que vir acompanhado do aumento de políticas públicas que busquem um melhor acolhimento dessas motoristas:
— É necessário pensar em locais adequados para recebê-las e também na abertura de oportunidades de trabalho, através de programas de capacitação e incentivos. A equidade é uma preocupação social atual e precisa ser prioridade também nas estradas.