Associação Brasileira das Empresas de Gerenciamento de Riscos e de Tecnologia de Rastreamento e Monitoramento

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A responsabilidade do transportador rodoviário nos casos de roubo de carga

Inicialmente, antes de abordarmos os fundamentos jurídicos deste artigo, temos que dizer, objetivamente e sem rodeios, que o roubo de carga é uma realidade constante em nossa sociedade. E o que é constante, conhecido, não é imprevisível, quiçá extraordinário. Isso é muito importante para a defesa apresentada neste ensaio.

O cenário mencionado repete-se cada vez mais e com maior frequência, fortalecendo a tese da fortuidade interna (que não rompe o nexo de causalidade.

Segundo os dados do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp), o Brasil registra, por dia, uma média alarmante de 27 incidentes desse tipo nas rodovias do país.[1]

Ainda que inevitável, o roubo de carga integra os riscos da atividade de transporte, uma vez que são perfeitamente previsíveis e, sendo assim, não se inserem no contexto da fortuidade.

Não se trata aqui de ignorar a gravidade ou os impactos que tais eventos causam nas operações logísticas e econômicas das empresas, mas sim de enquadrar juridicamente o fato em seu devido contexto. A previsibilidade, somada à habitualidade, retira do evento o caráter de exceção e o insere no cotidiano da atividade empresarial, afastando, portanto, a alegação de caso fortuito ou força maior como excludente de responsabilidade.

Fortuito interno

Em se tratando de risco do negócio de transporte, o roubo é, no máximo, fortuito interno. Essa modalidade de caso fortuito difere-se do fortuito externo, este sim capaz de romper o nexo de causalidade. Um caso albergado pelo selo da fortuidade externa é, a um só tempo, imprevisível, inevitável e irresistível. Já um caso considerado como típico de fortuito interno claudica em um ou mais desses itens, impedindo o rompimento da causalidade adequada.

Dessa previsibilidade, infere-se o papel do seguro de roubo de carga.[2]

Assim, o roubo de carga jamais poderia ser configurado como fortuito externo, muito menos romper o nexo causal e o dever do transportador de ressarcir, em regresso, os prejuízos suportados pelos seguradores sub-rogados nos direitos do dono dessa carga.

No plano conceitual e dialético, o roubo deveria sempre ser considerado, a despeito das circunstâncias, de falhas operacionais ou não do transportador, um evento típico de imputação de responsabilidade, porque previsível, até esperado diante da existência de seguro para tanto.

Portanto, é um risco do negócio de transporte.

Daí o entusiasmo com que defendemos a ideia do fortuito interno: o devedor de uma prestação/obrigação não quer sua inadimplência, não quer o dano, mas sabe que eles podem ocorrer, e esse risco está imbrincado em sua operação.

Em outras palavras: o transportador evidentemente não quer que o roubo aconteça, mas diante da sua ocorrência, não pode ele se elidir do dever de reparação integral dos prejuízos derivados.

Danos e prejuízos do roubo

Assim, estabelecido que o roubo não tipifica força maior, preenchidos estão os requisitos para a imputação de responsabilidade ao transportador, sendo um ônus que lhe compete assumir.

Insistimos — antes mesmo de prosseguirmos — que, no campo das ideias, o transportador deveria sempre responder pelos danos e prejuízos do roubo, tenha ou não agido com desídia operacional, já que o fenômeno se ajusta perfeitamente ao espectro conceitual do fortuito interno.

Fortuito interno, aliás, conforme entendimento doutrinário e artigo 393 do CC, é o evento inerente ao risco da atividade desempenhada, mesmo que o agente não tenha controle direto sobre sua ocorrência. Por ser previsível e relacionado à própria execução do contrato, não exclui a responsabilidade civil, especialmente nos casos de responsabilidade objetiva, como nos contratos de transporte.

Trata-se, portanto, de evento que não exime a responsabilidade civil do transportador, mesmo diante de sua inevitabilidade, uma vez que decorre diretamente da natureza da atividade exercida.

Apesar de estarmos convictas em defender a tese de que o roubo de carga não é, por si mesmo, ato-fato jurídico bastante para tipificar força maior, ainda que tenha ocorrido com ameaça de arma de fogo e outras circunstâncias graves, a jurisprudência tem o entendimento de que, embora a obrigação do transportador seja de resultado e sua responsabilidade de natureza objetiva, é possível ensejar excludentes, como caso fortuito ou força maior.

Seguro RC-DC

Então, temos uma curiosa situação de dialeticidade entre o conceito e o exercício de um elemento jurídico. Conceitualmente, ao menos no Brasil, onde o roubo é comum, é possível se falar em fortuidade interna e não rompimento de nexo causal, ou seja, imputação de responsabilidade; já a práxis expõe a necessidade de demonstrar alguma falha procedimental do transportador, alguma conduta pela qual ele tenha agravado o risco de ocorrência do roubo e deixado zelosamente de observar o dever geral de cautela, de que trata o artigo 749 do Código Civil.

E essa forma de entender o roubo, como força maior, privilegia somente o transportador, que se afasta da obrigação de reparar o dano, mesmo exercendo atividade de risco e auferindo vantagem econômica. Se há bônus, obrigatoriamente deve haver ônus. Embora isso pareça bastante lógico e juridicamente saudável, ainda há um longo caminho a ser percorrido antes da tese da fortuidade interna ser abraçada amplamente, sobrepondo-se à da fortuidade externa.

Nesse contexto, o seguro RC-DC não apenas confirma a previsibilidade do risco, como também serve como mecanismo compensatório e de alocação de prejuízos, evitando que os danos decorrentes do exercício da atividade empresarial sejam transferidos de forma indevida à parte contratante.

Inclusive, com o Enunciado 15 da Seção de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, percebemos um grande progresso, já que ele admite a superação da tese da fortuidade externa (ainda que não em todos os casos) e permite a busca do ressarcimento, mesmo havendo cláusula de renúncia ao direito de regresso por parte da seguradora (DDR), o que destaca a responsabilização do transportador quando este não adotar todas as diligências razoavelmente esperadas para evitar ou mitigar o roubo:

Enunciado 15: No roubo de carga objeto de contrato de transporte terrestre, é cabível o direito de regresso, se assim o autorizam as circunstâncias fáticas, ainda que exista cláusula de renúncia pela seguradora nas hipóteses em que houve agravamento do risco ou culpa do transportador.

 Nos exatos termos do Enunciado, e em consonância com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, justamente por conta da absoluta previsibilidade e adoção das cautelas de praxe a fim de evitar o evento, já não basta a afirmação genérica de que ocorreu o roubo da carga transportada como causa de rompimento do nexo causal:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO (ART. 544 DO CPC/73) – AÇÃO DE REGRESSO FUNDADA EM RESPONSABILIDADE CIVIL DE TRANSPORTADOR DE CARGA – DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECLAMO. IRRESIGNAÇÃO DA PARTE RÉ. 1. Consideram-se preclusas as matérias que, veiculadas no recurso especial e dirimidas na decisão agravada, não são reiteradas no agravo interno. Precedentes. 2. Em razão do princípio da uni recorribilidade e preclusão consumativa, não se conhece do segundo agravo interno apresentado em face da mesma decisão recorrida. 3. O roubo à mercadoria pode ser considerado como excludente de responsabilidade civil do transportador de carga, quando este tenha adotado diligências para evitar ou para diminuir as chances de ocorrência do evento. Precedentes. 4. Conclusão do acórdão recorrido quanto à negligência do transportador de cargas, afastando a excludente de responsabilidade civil, insuscetível de reexame em recurso especial, ante o óbice da Súmula 7/STJ. 5. Agravo interno de fls. 843-848 desprovido e não conhecido o de fls. 849-854. (STJ – AgInt no AREsp: 885407 SP 2016/0069871-4, Relator.: Ministro MARCO BUZZI, Data de Julgamento: 24/04/2018, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 03/05/2018)

A controvérsia jurisprudencial restringe-se tão somente a ilidir a responsabilidade do transportador de carga, quando o roubo é configurado como fortuito externo apto a afastar a sua responsabilidade pelo evento. Em outras palavras: a jurisprudência reconhece o valor da fortuidade interna, mas ainda não a aplica em todos os casos. É pela dinâmica do roubo que se reconhece ou não a fortuidade externa, tudo dependendo das particularidades de cada caso.

Recursos para evitar e inibir ações criminosas

A contestação do roubo como uma fortuidade externa deve-se às inúmeras tecnologias que auxiliam no processo de gerenciamento de transporte, como uso de GPS (possibilidade de acompanhar a rota do veículo e a localização da carga em tempo real), RFID (tecnologia de rastreamento de carga), Sensores de movimento (permitem detectar a abertura e fechamento do compartimento de carga com envio de alertas a central de monitoramento), câmeras de segurança, IoT (tecnologia de rastreamento de carga), isca de carga (dispositivos de rastreamento ocultos dentro das cargas com emissão de sinais de localização), escolta armada e muitos outros.

Para os caminhões, há ainda a opção de cabines blindadas, que aumentam a segurança não só do motorista como também das operações logísticas, além de botões de pânico e outras ferramentas eficazes de proteção do transporte e do transportador, de modo a, senão evitar, ao menos reduzir sensivelmente a possibilidade de roubo.

Diversos são os recursos disponibilizados para evitar e inibir a atuação dos meliantes na ocorrência de roubo de carga. A adoção ou não de algum desses meios de proteção e o fiel cumprimento do plano de gerenciamento de risco, de conhecimento dos transportadores, quando não de seu imediato protagonismo, serão fundamentais para a tipificação ou não da responsabilidade do transportador.

De posse de todos estes recursos e tecnologias, somente em casos muito extraordinários, que poderiam vir retratados nos livros de Sherlock Holmes, o roubo seria consumado e mais justificável seria a inclinação para uma fortuidade externa. A não observação desses recursos e tecnologias implica a imediata responsabilização do transportador, baseada em fortuidade interna.

Encargos para transportador

Embora o transportador tenha encargos onerosos, reconhecemos, os recursos existem, justamente porque a ocorrência do roubo de carga no Brasil é: fato previsível; faz parte do risco do negócio; trata-se de fortuito interno; e há norma legal cogente, portanto, de contratação obrigatória do objeto de cobertura e de seguros específicos (RC-DC). Logo, ele não pode deixar de cuidar do bom desenvolvimento de sua atividade e tudo fazer para minimizar o risco.

Para melhor ilustrarmos nossa proposição, podemos fazer um comparativo na utilização de carros blindados. A violência urbana é um problema gravíssimo que afeta vários municípios no Brasil, uns em maior escala, mas assaltos são crimes predominantes em todas as regiões do País. Pois bem. É evidente que a chance de ser assaltado em um carro blindado é mínima, quase nula, mas a proteção ao patrimônio tem custo alto e faz parte da proteção aos ocupantes do veículo e dos bens transportados.

No caso dos usuários dos carros blindados não há o signo da responsabilidade porque não há dever de motorista ou proprietário algum deles fazer uso. Trata-se, aos que podem arcar com o elevado custo, de uma proteção à sua vida, à de seus familiares e amigos, e a alguns bens. A eficiência da blindagem, porém, é induvidosa.

No caso dos transportadores de cargas, há o dever de cuidar dos bens confiados para transportes e a assunção dos riscos inerentes a esse dever. Os transportadores têm que fazer de tudo para diminuir o coeficiente de probabilidade de roubo, sob pena de assumirem os ônus respectivos das ocorrências.

Do mesmo modo, um caminhão carregado de carga valiosa é seguramente alvo de bandidos e, portanto, os protocolos de segurança devem ser adotados e seguidos pelo transportador rodoviário, já que sua responsabilidade é objetiva e o investimento na proteção à carga faz parte do risco do negócio.

Mais fôlego à tese da fortuidade interna

Esperamos que a tese da fortuidade interna nos roubos de carga ganhe mais fôlego porque, a bem da verdade, com as tecnologias atuais extremamente avançadas, o transportador rodoviário deve estar preparado para investir e fornecer a proteção adequada, garantindo a segurança não só da carga, mas principalmente do condutor do veículo transportador, sob pena de imputação de responsabilidade e de lhe impor o dever de indenizar.

Do mesmo modo que arcamos com o prejuízo quando vítimas do crime de patrimônio, uma vez que o Estado não tem como garantir a proteção de todos, e em razão do roubo de carga ser frequente no contexto de transporte e passível de mapear e combater, a responsabilidade de assumir os prejuízos do transportador rodoviário é de rigor.

Com o passar do tempo, a tese vai ganhando mais fôlego e a Lei 14.599, de 19 de junho de 2023, estabeleceu alterações significativas para o transporte de carga.

O Seguro RC-DC (Seguro de Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário por Desaparecimento de Carga), anteriormente conhecido por RCF-DC (Seguro de Responsabilidade Civil Facultativa do Transportador Rodoviário por Desaparecimento de Carga), passou a ser obrigatório para transportadores.

Modificação em lei de seguro

Além do transporte rodoviário se tratar de um dos principais meios de fluxo de mercadorias, essa modificação surgiu principalmente pela necessidade de proteger o transportador e o dono da carga da frequente ocorrência de assaltos à mão armada em rodovias, o que evidencia ainda mais o protagonismo na atividade de risco.

A nova lei associa o seguro RC-DC ao conjunto de protocolos de segurança conhecido como plano de gerenciamento de riscos, que enumera os deveres objetivos do transportador.

Os transportadores rodoviários passaram a ter maior ingerência no PGR por conta da nova lei, devendo cumprir de forma fiel e rigorosa o plano de viagem, sob pena de não receberem a indenização de seguro ou os benefícios da cláusula DDR.

Assim como os pilotos devem seguir um checklist antes da decolagem a fim de garantir a segurança do voo, o transportador rodoviário deve seguir na íntegra o plano pré-transporte, a fim de garantir que o veículo transportador esteja totalmente funcional, seguro e apto a partir para viagem.

Considerando isso tudo, é fato que o descumprimento do plano de viagem ou a falha em executá-lo pode resultar na facilitação da atuação de meliantes e no consequente êxito no roubo da carga.

Em vista disso, a conclusão de todos os itens do plano de gerenciamento de riscos neutraliza a atividade de risco, e, portanto, qualquer desvio do protocolo de segurança deve ser encarado como falta gravíssima, a implicar responsabilidade e, por parte do transportador segurado, a perda de recebimento de indenização.

Omissão do transportador

Se a jurisprudência admite a tese de perda de uma chance em caso de omissão, dúvida não há de que, mutatis mutandis, a omissão do transportador rodoviário também pode lhe imputar responsabilidade civil diante do dono da carga ou do segurador deste.

Enquanto aguardamos a plenitude da tese da fortuidade interna em todas as situações, algo que ainda demandará muita discussão e bom tempo, já festejamos e bastante o comentado Enunciado 15, a obrigatoriedade do Seguro DC e as muitas decisões da Justiça no sentido de imputar ao transportador a responsabilidade pelo roubo, afastando-se o conceito de fortuito externo e abraçando-se, ainda que parcialmente, o de fortuito interno.

Recente decisão de um caso em que atuamos pelo escritório, defendendo seguradora sub-rogada na pretensão original do dono da carga roubada, segurado do seguro de transporte, foi particularmente feliz ao fundamentar:

TRANSPORTE DE MERCADORIA. ROUBO. Ação regressiva julgada parcialmente procedente, com consequente apelo de ambas as partes. Apólice de seguro que expressamente previu a necessidade de plano de gerenciamento de risco a ser observado pela segurada e/ou transportadora por ela contratada. Contrato de transporte firmado entre segurada e transportadora que igualmente prevê a necessidade de gerenciamento de risco de suas operações, que deve ser adequado às exigências realizadas pela seguradora. Transportadora que, no entanto, descumpriu regra de gerenciamento de risco prevista no contrato de seguro, a ensejar a sua responsabilidade exclusiva pelo ocorrido. Recurso da autora provido para julgar procedente a ação e recurso da ré desprovido.

(TJSP; Apelação Cível 1019925-79.2021.8.26.0114; Relator (a): JAIRO BRAZIL; Órgão Julgador: 19ª Câmara de Direito Privado; Foro de Campinas – 8ª Vara Cível; Data do Julgamento: 17/02/2025; Data de Registro: 19/02/2025)

No mais, fica o alerta: a regulação de sinistro torna-se, cada vez mais, uma peça estratégica para o mercado segurador. Não apenas como mecanismo de apuração e documentação de eventos, mas como ferramenta decisiva para o fortalecimento da perspectiva de ressarcimento em ação regressiva contra o transportador — especialmente quando evidenciada sua culpa, ainda que em grau leve —, ou, conforme o caso, para a negativa justificada da indenização securitária, notadamente nos seguros de desvio de carga.

Nada alimenta melhor o bom discurso jurídico no trato do direito dos seguros e do direito dos transportes do que uma regulação de sinistro sólida, minuciosa e tecnicamente orientada. Ela não apenas dá suporte ao posicionamento da seguradora, em juízo ou na via administrativa, como também delimita com clareza a responsabilidade de cada agente da cadeia logística, permitindo uma melhor análise das relações contratuais do transporte.


[1] Ocorrências Criminais – Sinesp – Conjuntos de dados – Ministério da Justiça e Segurança Pública

[2] Também conhecido como Seguro de Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário de Carga – Desaparecimento de Carga (RC-DC) é uma apólice especializada que protege as empresas de transporte contra perdas financeiras significativas caso as cargas sejam perdidas ou roubadas durante o transporte.

  • Giselle Felicianoé advogada do escritório Machado e Cremoneze – Advogados Associados.
  • Jackelinne Medeirosé advogada do escritório Machado e Cremoneze – Advogados Associados.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2025-abr-18/a-responsabilidade-do-transportador-rodoviario-nos-casos-de-roubo-de-carga/

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